“Porque o reino do poeta... bem, não me venha dizer que não é deste mundo. Este e o outro mundo, o poeta não os delimita: unifica-os. O reino do poeta é uma espécie de Reino Unido do Céu e da Terra.”

Mario Quintana

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Carta



    Meu caro poeta,
   Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a Verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, limita-se a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos!
   Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as digressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
   A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação: (Em vez de associações de ideias, associações de imagens; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
   Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos dezessete anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: 
   "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
   Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os seus detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
   Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
   Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado? 

(Caderno H)

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Aforismo

"O único problema da solidão consiste em como preservá-la."

O Deus vivo


Deus não está no céu. Deus está no fundo do poço
onde o deixaram tombar.

- Caim, o que fizeste do teu Deus?!

Suas unhas ensanguentadas arranham em vão as
                                                  [paredes escorregadias.
Deus está no inferno...

É preciso que lhe emprestemos todas as nossas forças
todo o nosso alento
para trazê-lo ao menos à face da terra.

E sentá-lo depois à nossa mesa
e dar-lhe do pão e do nosso vinho.

E não deixar que de novo se perca.
Que de novo se perca...nem que seja no céu!

(Apontamentos de História Sobrenatural)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A Porto Alegre do Quintana artigo por Manuela d’Ávila


Porto Alegre é reconhecida nacional e internacionalmente pela riqueza cultural que possui, entre outros fatores, claro. Somos terra de grandes talentos e essa essência faz da Capital gaúcha uma referência cultural. Aqui temos a Feira do Livro, a Bienal do Mercosul, museus, arte de rua e tantas outras. Porto Alegre é berço de talentos. E quando os talentos não são nossos, acabamos por tomá-los emprestados ou somos adotados por eles. É o caso de um dos maiores poetas da literatura brasileira. No dia 30 de julho celebramos os 105 anos do nosso grande poeta Mario Quintana.

Quintana não é porto-alegrense de nascimento, mas tinha a cara de Porto Alegre. Como tantos que vivem na Capital hoje, que pela cidade foram abraçados e pela qual se apaixonaram. Foi assim com Quintana, poeta de frases simples e astutas, que tocavam a todos; que escreveu para crianças e adultos com a mesma simplicidade e incrível capacidade. Sempre que penso em Porto Alegre, lembro de Quintana e do poema O Mapa: “Olho o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo... Sinto uma dor infinita das ruas de Porto Alegre onde jamais passarei... Há tanta esquina esquisita, tanta nuança de paredes (...). E há uma rua encantada que nem em sonhos sonhei...” Porto Alegre e Quintana se confundem. 



Nosso poeta – que teve sua vida diretamente ligada à cidade de Porto Alegre – virou Casa de Cultura. Virou patrimônio histórico e marca de uma cidade que é revisitada por seus poemas em todos os cantos. Precisamos ampliar esse sentimento e consolidar Porto Alegre como uma referência cultural, como uma cidade que incentiva os produtores e agentes e que promove a cultura em suas diversas manifestações. Afinal, é através da cultura que um povo conta sua história. Para isso, precisamos fomentar o teatro e a dança; fortalecer o Fumproarte; valorizar a cultura de rua e o grafite; investir em museus, arquivos, bibliotecas, além de incentivar o público a visitar esses locais; investir na formação cultural; e, claro, descentralizar a cultura, facilitando, assim, o acesso de todos aos bens culturais de nossa Porto Alegre. Através de iniciativas como esta, a cidade de Quintana terá cada vez mais nuanças em paredes e outros tantos lugares.


Fonte: Site Jornal do Comércio